Extremos

 

A paisagem até ao Pego da Rainha perdeu o rosto nos fogos de 2017. No concelho de Mação, soma-se a estes fogos o de 2003 — nesse ano, o maior do país — e o de 1991, saldando-se, no seu conjunto, em mais área ardida do que aquela que o concelho mede.

Onde antes registávamos uma mancha verde, encaramos agora o esqueleto de cada uma das árvores ardidas. A perder de vista. O suave relevo desta região acentua a magnitude deste cemitério na paisagem.

Perante uma tragédia de tamanho impacto, a escala das emoções com as quais estamos familiarizados é curta para o confronto com este choque. Somos arrancados à nossa realidade tangível. Em defesa, o instinto manda- -nos reagir em negação, “isto não podia ter acontecido”. Mas o silêncio da paisagem de carvão responde-nos.

Apenas podemos admirar todos os que aqui moram e sermos solidários nas diversas frentes, sobretudo agora, quando se discutem as condições para o renascimento destas paisagens e das suas pessoas.

Chegar ao Pego da Rainha alivia-nos da desolação que nos escoltou. Mergulhamos no extremo oposto, numa paisagem de abundância, de árvores frondosas, de musgo, de água. Um luxo, por contraste. Quem aqui vem merendar ou nadar, sabe-o.

Antes de chegarmos, já o silêncio é vencido pelo som da água cascata abaixo. Consta que a ribeira da Zimbreira corre o ano inteiro, o que é de admirar numa região que julgávamos seca e árida. Dada a profundidade do pego, junto à cascata até se pode saltar para a lagoa — mas atenção: só de pé! —, uma autêntica piscina natural.

Do lado esquerdo do pego, sai água límpida de uma bica, pronta a matar a sede e — juram os habitantes — a sarar muitos males de pele. Chegar ao Pego da Rainha alivia-nos da desolação que nos escoltou. 80 81 Singularidades O que fazem centenas de pequenos socalcos nas encostas? Onde agora arderam pinheiros e eucaliptos, havia antes oliveiras, cerejeiras e castanheiros. Era este o arvoredo predominante nas serras. Nos montes agora descarnados, são visíveis as chamadas calçadas — o nome que os habitantes dão aos socalcos — que eram montados pedra por pedra e na base das quais se plantavam as oliveiras para as segurar nos declives. Do lado direito, ainda se observam as ruínas de uma antiga azenha. Noutros tempos, operar este moinho de água obrigava ao duro trabalho de descer e subir o caminho íngreme, com burros carregados de sacos de cereais.

Por detrás do oásis, erguem-se imponentes penhas - cos quartzíticos, que já antes se impunham na paisagem quando descíamos para o vale.

Apetece ficar mais tempo no Pego da Rainha. Talvez porque vimos da água e essa linhagem está impressa nos nossos genes. Mas também porque a sua cantiga tranquila nos ajuda a aliviar o desgosto que trazíamos.

Nota: Apesar das marcas inevitáveis que vão ficar, esta paisagem irá recuperar pela força do tempo e do ser humano. Por isso, achamos que o momento de visitá-la é agora. Numa altura em que ainda há placas de localização ardidas por substituir (!), esta é uma forma de mostrar às pessoas destas terras que não estão esquecidas.

Construtor de paisagens

 

Traçar a cartografia desta paisagem é traçar uma memória individual e coletiva de desolação, mas também de esperança. No Pego da Rainha, tivemos a sorte de a história deste lugar nos ser contada na primeira pessoa e com alento na voz. No pego, encontrámos o Sr. António Mendes Gonçalves, agricultor de idade avançada, natural de Zimbreira, a aldeia mais próxima. Carregava para o seu trator garrafões de água que tinha estado a encher na bica da lagoa. A agilidade com que avançava de pedra em pedra sobre a ribeira era notável.

Ao pedir-lhe se nos podia contar um pouco sobre este lugar, abre um sorriso maroto e responde: “Eu sou o dono do Pego!”. Com acasos como estes, é como se nos saísse a sorte grande. Estamos habituados a reconhecer como propriedade privada terrenos cultivados, pomares, olivais ou pinhais, mas não uma cascata entre rochas e penhascos.

Empreendedor por natureza, contou-nos que comprou o Pego da Rainha e a azenha a três proprietários, há 50 anos, na altura por 30 contos. Perguntamos pelos hectares da propriedade, mas o Sr. António prefere apontar com o dedo em várias direções para mostrar até onde chega.

Faltava saber a razão para ter adquirido um terreno de tão difícil proveito agrícola. Explicou-nos que ainda era novo e que com a ajuda dos dois filhos destinava montar umas termas e um restaurante. Não avançou neste propósito arrojado porque cada filho acabou por seguir o seu caminho e porque o seu bichinho de homem de terras o levou a comprar e cultivar tantas fazendas quando podia. O tempo, parecendo que estica, acabou por não dar para tudo.

“Acabámos por nos dedicar a outras vidas”, remata e num raro momento de resignação conclui que “agora é só pena porque já tenho uma idadezita”.

Mas sempre soube o quanto este recanto é especial e como especial o tem tratado. “Aqui não havia nenhum amieiro, fui eu que os plantei todos. Também mandei colocar aquelas mesas ali para as pessoas merendarem” — afirma com evidente orgulho. Para não falar de cerejeiras e oliveiras, que o último fogo levou. Cuidou de mandar analisar a água da bica na fábrica das águas da região e, se já tinha a convicção de que “não há nenhuma como esta”, os resultados vieram confirmá-lo, uma vez que “não encontraram nada”. E apesar dos seus “oitenta e tal anos” — percebe-se que gosta de deixar a idade por adivinhar — continua a cuidar: “a câmara tem de vir aqui limpar o fundo, por causa da água que veio cheia de cinzas, na altura dos fogos”. Mesmo razões de ordem estética o preocupam, porque também pediu que retirassem uma pedra grande que veio cair no meio do lago.

Com alguma hesitação perguntamos-lhe pelos fogos, por se tratar de um tema muito doloroso para quem por eles passou. Em julho de 2017, a Zimbreira, aldeia envelhecida com menos de 20 habitantes, chegou a fazer parte das povoações evacuadas. Mas depressa se percebe que o Sr. António não dá azo a sentimentos de perda ou fatalismos. “Aqui já ardeu três vezes, mas agora é que fiquei sem nada.” Percebemos que ter ficado “sem nada” para o Sr. António talvez seja ter ficado com menos, face ao número e extensão de fazendas que adquiriu ao longo da vida. Ainda assim fala-nos que de 300 colmeias perdeu 100, e dos 200 sobreiros que lhe arderam no passado agora ardeu o resto, fora pinhais e eucaliptais. “Eu cheguei a ter 5000 pinheiros à resina, aí nessas serras, antes de vir o primeiro incêndio. Eram pinheiros grandes.” Neste relato não se adivinha amargura na voz. Nota-se que está habituado a enfrentar as adversidades da vida e da natureza e a seguir em frente. Resiliência de rara qualidade.

Quem o escuta leva a ideia de que estas terras são tão ou mais férteis que noutras paragens.

Conta-nos que a terra aqui é húmida, talvez por estar num vale e ter a ribeira por perto. Há que trabalhar e não desistir. Percebe-se isso quando nos fala das centenas de oliveiras que plantou ou das diversas tentativas falhadas de plantar castanheiros, porque “lhes dá o mal”. Agora, num derradeiro golpe de dissimulação, plantou com o filho mais novo carvalhos americanos “que se dão bem aqui”, nos quais vão enxertar castanheiro.

Por isso, apesar da idade, o Sr. António usa os verbos no presente e no futuro. Mesmo depois das muitas histórias que nos contou remata “se eu lhe contar a minha vida...”. Se contasse, sabíamos o título que merecia: Sr. António — o construtor de paisagens.