Cova do Vapor
Apropriação
“Já vinha para cá antes, mas quando me reformei, há dois anos, vim para aqui viver”, diz-nos uma cliente da À volta cá te espero, a única mercearia da Cova do Vapor. Na praia, encontramos outra habitante que nos conta que o marido, hoje com 75 anos, já para aqui vinha em pequeno passar férias para uma casa de madeira comprada pela mãe. Mais tarde, a família acabou por reconstruir a casa de raiz, fazendo questão de dizer que “não é um desenrasque, é uma casinha”.
Mais de metade dos residentes da Cova do Vapor encontra-se numa situação semelhante, a de aqui passar a sua reforma ou pelo menos uma parte dela. A este grupo juntam-se as pessoas que ainda trabalham, mas vêm passar o fim-de-semana e as férias. Em comum têm também a razão que os faz gostar de vir: o sossego que ainda se respira nesta antiga aldeia piscatória e na sua pequena praia, por oposição ao frenesim da capital — a escassos quilómetros na margem norte — e à confusão das restantes praias da Costa da Caparica.
Se nos pedissem para imaginar este lugar apenas com base nesta descrição, provavelmente fá-lo-íamos corresponder a um aldeamento balnear recente com bungalows em série, arrumados em pequenos relvados. Só que, neste caso, suspeitamos que qualquer esforço de imaginação fique aquém da singularidade que caracteriza a Cova do Vapor. É preciso conhecê-la.
Na Cova do Vapor, o rio Tejo despede-se das suas margens e entrega-se ao Oceano Atlântico. Esta última povoação da margem a sul é a expressão paisagística de uma visão do mundo. Aos olhos dos mais desatentos poderá parecer um bairro degradado de antigos pescadores, mas quem estiver atento aos pormenores e à impressão do conjunto, compreende que aqui se concretizou uma construção social e cultural carismática, que tem tanto de espontâneo quanto de intencional.
Onde hoje é a vila existia antes um lugar com algumas barracas de madeira que serviam de apoio aos pescadores da zona. Nos anos 30 do século XX, o local começou a ganhar interesse como destino balnear dos lisboetas, que passaram a vir de barco a vapor para a já desaparecida Lisboa-Praia. Esta praia, assim chamada devido a uma extensa língua de areia que se prolongava até ao farol do Bugio, formava-se devido ao forte assoreamento da foz do rio. Há ainda quem se recorde de, na maré baixa, ir a pé ao farol.
Entre os veraneantes que decidiram construir o seu cantinho à beira-mar e os pescadores que aí ganharam raízes, o povoado começou a desenhar-se. De forma orgânica, sem planeamento nem licenças, apenas à medida das necessidades e do gosto de cada um. Nesta vila inventada, todos foram arquitetos, materializando as aspirações possíveis de uma casa à sua imagem. E é aqui que reside o encanto da Cova do Vapor, no gosto individual e popular e no orgulho coletivo nesse gosto, que se regista nas pouco mais de 350 casas, erguidas numa espécie de improvisação esmerada: nas camadas visíveis de intervenções para melhorar as condições ou o aspeto da casa (uma nova porta em ferro forjado, um pátio improvisado para almoçar), nos anexos aplicados à casa original para acomodar uma família em expansão ou nos profusos elementos decorativos das fachadas e muretes (arcos de portas cobertos com conchas, azulejos com cenas de pesca ou peixes em barro).
A cumplicidade transversal a esta construção coletiva é também revelada na luta empreendida pela Associação de Moradores da Cova do Vapor para que ali chegasse água e eletricidade e no humor que os residentes colocaram na escolha dos nomes para algumas das ruas. A Rua 5.ª Avenida ou a Av. dos Milionários são vielas labirínticas que podem não dar para um esticar de braços, mas mostram o espírito positivo de uma comunidade.
Enquanto nas grandes regiões urbanas, como na vizinha Lisboa, se corre o risco de perda de identidade do lugar, aqui mantém-se firmemente preservada já que cada morador foi autor e transformador dos mais ínfimos pormenores desta paisagem. Para já, se alguma coisa aqui se perde é apenas o areal, porque o mar é que manda.
Aldeia Caminhante
O sítio onde cresceu a Cova do Vapor pertence agora ao mar. Quando, a partir dos anos 40 do século passado, começou a dragar-se areia da foz do Tejo, para fixar as margens a norte e permitir a passagem de navios de grande porte, a língua de areia desapareceu, alterando o comportamento das correntes e levando o mar a avançar pelas praias em toda a Costa da Caparica. As casas mais próximas da linha de água ficaram em perigo e, desde então, foram mais de seis as vezes que a aldeia teve de recuar para o interior, em direção à Mata de São João, primeiro com a ajuda de juntas de bois, depois com tratores (só entre 1947 a 1951, o mar avançou 500 metros).
As primeiras casas adaptavam-se às circunstâncias do lugar, porque eram de madeira e assentavam em estacas sobre as dunas, bastando levantá-las e transportá-las para longe do mar. Mas, agora, se precisarem de recuar, a situação é diferente: “O lugar é orgânico e continua o seu processo de transformação, mas as casas, como são quase todas de cimento, já não conseguem acompanhar a erosão”, afirma Amália Buisson, co-fundadora do projeto Transformar, uma iniciativa comunitária para a proteção e regeneração das dunas da praia da Cova do Vapor. Em 2012, trocou Lisboa pela aldeia, para estar perto do mar e da natureza, acabando por se envolver ativamente nos projetos sociais, culturais e de preservação ambiental deste lugar. “No fundo, as dunas são uma proteção natural contra o avanço do mar, por isso é importante fixá-las.” Explicou-nos que este projeto pretende angariar fundos para plantar espécies autóctones que ajudem a manter as dunas e para construir passadiços de acesso à praia que evitem o pisoteio das plantas. Porque a vila agora já não tem pernas para fugir ao mar.