Antropoceno

 

Estamos no alto de um monte verdejante, erguido junto a um extenso vale na Amadora. Foi recentemente equipado com campos de futebol, ténis e padel, um parque infantil e circuitos de manutenção para se tornar no Parque das Artes e do Desporto. O que torna este relevo digno de referência é o facto de ter sido erguido pela mão humana: um corte longitudinal feito a este monte revelaria o maior aterro sanitário ao serviço da cidade de Lisboa até finais dos anos 80 do século XX. O monte terá tanto de alto como de fundo porque antes de servir para depositar resíduos foi local de extração de pedra.

Até há cem anos atrás encontrava-se aqui paisagem cultivada e natural, pontuada por casais, dos quais sobram ainda os nomes: Casal de São Brás, Casal da Mira, Casal das Silveiras e Casal da Boba. Deste último não sobrevive apenas o nome, mas sim alguns casarios e seus habitantes, que dão provas de uma enorme resiliência, considerando que, paredes meias, se abriu uma pedreira nas primeiras décadas do século passado, para construir a cidade; que deu lugar a uma lixeira a céu aberto; que deu lugar ao maior aterro sanitário ao serviço da capital... e que agora dá lugar a um parque.

A história deste sítio testemunha de forma exemplar como em apenas duas gerações o ser humano converteu diversas vezes a paisagem, sem se preocupar em garantir o seu equilíbrio. Pisamos uma paisagem do Antropoceno*: uma paisagem de extrair, absorver e rejeitar. Com sorte, remenda-se. Com muita sorte, reabilita-se. No antigo aterro da Boba, falamos de emendar, reabilitar ou meramente de esconder?

A transformação do aterro em parque, num louvável exercício de regeneração, poderá não garantir a sua perenidade: quanto tempo leva até que um monte fabricado de resíduos obedeça às leis da natureza? Note-se que as árvores teimam em não assentar raízes (consta que é a segunda tentativa de plantação). Há melhor metáfora?

Destino

 

Estamos numa cidade periférica que cresceu demasiado depressa e à míngua de planeamento urbano. Coexistem vivendas dos anos 70 e 80, do século passado, com bairros dormitórios, de alojamento social, zonas comerciais, sem se perceber uma intenção de harmonização entre estas áreas. A fender a paisagem, o largo rio de asfalto do IC16 que liga as pessoas entre a capital e a sua casa. Ao lado da via rápida, impõe-se um centro comercial de dimensões desmesuradas.

Apesar de fervilhar de vida humana, é difícil reconhecer o fluxo de vasos comunicantes de afetos, trabalho, cultura e descanso individual e coletivo. O próprio fio cronológico das metamorfoses do atual parque realça os destinos erráticos deste lugar, que tarda em conquistar uma identidade.