A exposição Mapas de palavras: itinerários temáticos no território Tejo propõe vários encontros com a paisagem, guiados pela linha subjetiva do sentido. Tomando como ponto de partida a conceção de paisagem como envolvendo estratos materiais, simultaneamente tangíveis e difusos, atravessados e reunidos pela experiência de perceção e afeção do sujeito, procurámos adentrar-nos no território da bacia do Tejo em busca de uma cartografia temática. A partir das viagens e caminhadas do trabalho de campo, realizadas nesta bacia hidrográfica, foram surgindo temas recorrentes que encontrámos nestas paisagens. Esta exposição desenha olhares e leituras sobre o Tejo que o decifram à luz desta rede de palavras, sugerindo itinerários experimentais e poéticos abertos à imaginação e participação do público.

 

Escolha e navegue em cada itinerário.

Antropoceno

O antropoceno, a conceção de uma nova era geológica determinada pelos efeitos dos desenvolvimentos tecnocientíficos e pela ação humana em geral na Terra, popularizada pelo químico holandês Paul Crutzen, laureado com o Prémio Nobel de Química em 1995, equipara a humanidade a uma força de mutação profunda e imprevisível do ambiente. Sendo alvo de intenso debate e variações, o antropoceno elabora uma noção de ambiente definida pela sua condição tecnológica, instabilizando dualismos clássicos do conhecimento, nomeadamente o de natureza versus cultura. Guiados pela conceção de antropoceno, a paisagem desdobra-se em múltiplas camadas de ação humana, algumas abruptamente inscritas no território e, outras atravessando-o de modo fluído e disseminado. Assim, desde a transformação massiva da paisagem na Pedreira Cabeça Gorda, passando pelo incessante vaivém da autoestrada A1 ou do terminal de cruzeiros lisboeta, ao jardim que esconde o antigo aterro sanitário da Boba e ao massivo armazenamento de informação no Data Center da Covilhã, navegamos em paisagens que se expandem muito além dos lugares que atravessam.

Tempo
Existem camadas de tempo nas paisagens, desde a temporalidade profunda da Terra e a sucessão implacável dos dias e noites até à pulsão mercurial introduzida pelo nosso corpo e sensações na experiência do lugar. O tempo, esfíngico, faz e desfaz lugares e formas de vida, lembrando-nos que a fugacidade da nossa existência nos deve inspirar um sentimento de acolhimento e responsabilidade pelas paisagens que habitamos. Face à temporalidade árdua da exploração mineira romana, em Conhal do Arneiro, observamos grandes pedras, amontoadas pelo labor das mãos de homens, muitos deles escravos e deparamo-nos com uma paisagem crivada de vestígios de exploração humana. Nas variações do aroma, resultantes da cremação dos troncos de árvores, os veladores dos fornos de carvão de Santana do Mato conseguem decifrar em que estágio se encontra a lenha que se transformará em carvão. Recolhemo-nos no tronco ancestral da Oliveira de Mouchão, como se de um casulo se tratasse, e contemplamos a paisagem, em forma de manchas e linhas, formada pela alternância de montado e olival em Évora-Monte. Em São Pedro de Vir-a-Corça, atentos ao entrelaçar do sagrado na paisagem, adivinhamos a presença do eterno espírito protetor do lugar.
Origem
Existem paisagens que guardam o segredo velado da origem do lugar. Nas rochas, olhamos um filme milenar no qual a Terra se agita, fratura, colapsa, agrega e reconstrói. Na Penha do Meio Dia, sob o ímpeto do vento, no chão, resistentes, os maciços calcários projetam-nos para a origem dos continentes, quando o litoral português se desprendeu do continente americano e africano e começou a desenhar o seu recorte junto ao mar. Do Píncaro da Serra do Risco, depois de um caminho sinuoso, pontuado por pedras calcárias, encontramos a vertigem azul do oceano Atlântico. À beira da Ponte de Sume, descobrimos uma paisagem de penedos graníticos e, persistentemente, procuramos o caminho cristalino da Ribeira de Sor. E é também no granito da Gardunha que admiramos as fendas, provocadas pela ação do sol e do gelo, que dão origem ao “caos de blocos”, esculpido pelo tempo. A paciente erosão a par de alterações químicas e colisões tectónicas, que ocorrem há milhões de anos, originaram a bela crista quartzítica da Serra das Talhadas, que vemos cruzar-se com o ondular do rio Ocreza, nas Portas do Almourão.
Linha
Os rios e ribeiras que vão ao encontro do caudal do Tejo serpenteiam o território da sua bacia hidrográfica e moldam paisagens que se estendem muito além da linha do rio Tejo. O movimento cristalino e perpétuo das águas faz-se à superfície mas, por vezes, também mergulha na crosta terrestre, abrigando-se da luz, como acontece parcialmente com o Aqueduto de Pegões. A linha de água do Tejo divide, simbolicamente, o Portugal Atlântico do Portugal Mediterrânico e, nas escarpas do vale do Erges, no limite de Salvaterra do Extremo, o rio assume-se como fronteira separando o território português de Espanha. Ao descobrirmos o recorte da rede hidrográfica, observamos a nascente do Zêzere, na Serra da Estrela, a beleza angulosa das Fragas de São Simão e a paisagem pouco povoada que vê correr a Ribeira de Alpreade.
Travessia
Atravessar paisagens convoca corpos em movimento, recordando simultaneamente a natureza processual da interação vivida, sentida e representada do sujeito com os lugares. Quando o corpo humano, no seu fôlego e passo, não consegue a plenitude da travessia, surgem meios para o ajudar: pontes férreas que correm velozes ao longo do vale do Tejo, como a Ponte da Chamusca, comboios que percorrem a paisagem, recortando-a incessantemente na moldura das suas janelas, ou o abrigo oscilante de um barco que transporta os seus passageiros, como na travessia fluvial Belém – Trafaria. Porém, a exploração do território faz-se também corpo a corpo, os sentidos humanos como interface com o lugar, adentrando-nos na paisagem para, ao sabor da intuição, nela nos desencaminharmos e experienciarmos o prazer do encontro livre e inesperado com o mundo em torno de nós. Muito anteriores aos nossos passos, há sensivelmente cento e sessenta milhões de anos atrás, os monumentais corpos dos dinossáurios habitavam o território Tejo e atravessavam o Parque Natural da Serra de Aire e Candeeiros, deixando-nos aí um carreiro de pegadas como documento histórico da multiplicidade de seres vivos e da metamorfose da vida no planeta Terra.
Pertença
Estar e vivenciar a paisagem faz-nos, por vezes, sentir que lhe pertencemos ou que ela nos pertence. Estamos inteiramente na paisagem, inscrevemos nela pequenas marcas que a moldam ao nosso ser. A paisagem torna-se companheira, refúgio, aprendemos a lê-la e nela encontramos os sinais que nos protegem ou, ao invés, na convulsão dos seus elementos, a paisagem lembra-nos quão frágeis afinal somos. E mesmo quando alguém possui um lugar, sabemo-lo dotado de forças e vulnerabilidades, como podemos sentir junto à cascata cristalina do Pego da Rainha, após a travessia de um horizonte desolado pelo flagelo do fogo. Também a paisagem tecida pela comunidade que encontramos na Cova do Vapor, na sua malha de cores e texturas, é vigiada pelo frio do mar que ameaça as dunas, contando histórias de recuos das casas e suas gentes face à investida das vagas. Descobrimos ruínas urbanas que são testemunhos da reinvenção afetiva dos lugares, conversando com pescadores no Cais do Ginjal, por entre linhas, alguidares e anzóis. Mas também existem paisagens nas quais se respira a nostalgia de um passado de plenitude, como na Herdade do Rio Frio, que em tempos foi uma das maiores e mais prósperas do país e que hoje se encontra perante um futuro incerto de sobrevivência. A pertença pode ser igualmente um apelo da paisagem, um dia ela chama-nos a si e nela inscrevemos uma marca, cria-se um abrigo, um lugar secreto.
Ausência
Encontramos paisagens das quais o ser humano se ausentou, mas onde persistem vestígios da sua passagem e vivência. Há algo de espectral nessas paisagens, como se aguardassem o retorno dos seus habitantes ou, ao invés, recolhessem o segredo de um último refúgio inabitado. A atenta observação destes lugares recorda-nos a impermanência e a metamorfose cíclica da atividade humana. Do vestígio nefasto de um erro científico, lugubremente erigido numas termas, à vegetação expansiva que invade as salas de um palácio e à melancolia guerreira de um castelo, atravessando o despido viaduto de Mora e o abrigo de vida selvagem no Monte dos Alares, fazemos um caminho por paisagens entregues a si mesmas e às suas memórias.
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