Antropoceno
Exposições
A recente explosão deste tipo de turismo fez com que milhares de passageiros (a capacidade dos cruzeiros que atracam em Lisboa vai de 1000 a 4500 pessoas) desembarquem quase diariamente na cidade, contribuindo para uma alteração brusca do espaço.
Quando há muitos turistas na paisagem eles próprios passam a fazer parte dela, marcando-a como elemento preponderante. O efeito secundário desta presença em massa é o risco de não encontrarem as características que, afinal, procuram no lugar. Tudo depende do ponto de equilíbrio que se conseguirá encontrar entre crescimento turístico e identidade do lugar, um assunto há muito em discussão (e que deu origem ao conceito de turismo sustentável).
Levantam-se várias questões. O quanto é a paisagem um recurso, o quanto é um lugar de apreciação e de vivência local própria? Nas paisagens turísticas, os lugares adaptam-se aos turistas oferecendo serviços e produtos que são uma mais valia para a economia local, ajudando a criar emprego, melhorar as infraestruturas e preservar o património. Mas demasiada adaptação pode resvalar em descaracterização. Como garantir a dinâmica da vida e cultura locais para os seus habitantes e ao mesmo tempo os atributos turísticos da paisagem, mantendo-a habitável e visitável?
Quanto é o encontro entre os turistas e os habitantes uma troca (intercultural e económica) satisfatória? Afinal, ambos têm expectativas. O escasso tempo que o turista de cruzeiro passa em Lisboa – em média apenas oito horas – é suficiente para essa troca? Importa o que o turista escolhe fazer? É diferente fazer um tour de autocarro pela cidade ou passar umas horas numa esplanada a provar comida local e a conversar com residentes. São experiências do lugar distintas, com impactos distintos na paisagem. É possível promover aquelas que melhor ajudam a cidade a desenvolver-se.
Mas também aconteceu o contrário, o que estava perto ficou longe. No início, as estradas moldavam-se à morfologia da paisagem, descendo aos vales, contornando montanhas e imitando os cursos dos rios. As povoações ligavam-se por estas vias ou criavam-se novas para as ligar. A muitos dos terrenos agrícolas ou às florestas acedia-se por caminhos estreitos desenhados pelo vaivém dos rodados. No caso das vias rápidas moldou-se a paisagem à autoestrada. As suas linhas contínuas, quase retas e sem curvas de nível acentuadas, exigem que se abram túneis e montes e se ergam viadutos para permitir velocidades motorizadas a 120 quilómetros por hora. Com uma largura média de 30 metros e um traçado de centenas de quilómetros, as autoestradas são das obras de maior impacto na paisagem, porque a vai interromper na maior parte do seu traçado. Há povoações próximas que ficam separadas, outras que voltam a ser ligadas por um novo trajeto e uma ponte. Nada que não seja absorvido, instalando-se o hábito. A interrupção também acontece na paisagem enquanto ecossistema, das relações ecológicas da fauna e da flora.
Nós próprios, quando viajamos na autoestrada interrompemos a interação com a paisagem. A relação torna-se asséptica com o espaço em redor, acentuada pelo facto de se ter descarnado o terreno no qual assentam as estruturas de asfalto, lembrando a desinfeção a que se sujeita o pedaço de pele antes do ato cirúrgico. Tudo aspetos que recordam que o objetivo pretendido é o transporte. A área de circulação é delimitada por guardas de segurança à esquerda e à direita que impedem de aceder à paisagem (e à sua contaminação). Também os sentidos, com exceção da visão, ficam impedidos de a registar, mantendo-se apenas comprometidos com o que se passa na viatura (a menos que se abra a janela). Só virando numa próxima saída à direita é que se pode regressar a um envolvimento na paisagem.
Por fim, experimenta-se uma certa abstração do próprio trajeto, pelo menos, por parte do condutor, porque conduzir numa autoestrada exige menos atenção que uma estrada nacional ou municipal e porque também é pouco provável perdermo-nos no caminho ou por outros caminhos. Na verdade, na via rápida, há uma forma de nos perdermos, até chegarmos à meta. Em conversas ou em pensamento. Aconteceu de sobra na A1 a A23, as duas autoestradas que percorrem a bacia hidrográfica do Tejo e que percorremos nas dezenas de saídas de campo.
No início do século XX encontrava-se aqui paisagem cultivada e natural, pontuada por casais, dos quais sobram ainda os nomes: Casal de São Brás, Casal da Mira ou Casal das Silveiras. No Casal da Boba, junto ao parque, ainda sobrevivem os casarios e os seus habitantes. Uma prova de resiliência, considerando que, paredes meias, abriu-se nas primeiras décadas do séc. XX uma pedreira, para construir a cidade; que deu lugar a uma lixeira a céu aberto; que deu lugar ao maior aterro sanitário ao serviço da capital; e que agora dá lugar a um parque.
A história deste lugar testemunha de forma exemplar como em apenas duas gerações o ser humano converteu diversas vezes a paisagem, sem se preocupar em garantir o seu equilíbrio.
Pisamos uma paisagem do Antropoceno*: uma paisagem de extrair, absorver e rejeitar. Com sorte, remenda-se. Com muita sorte, reabilita-se. No antigo aterro da Boba, falamos de emendar, reabilitar ou meramente de esconder?
Mesmo a transformação do aterro em parque, num louvável exercício de regeneração, poderá não garantir a sua perenidade: quanto tempo leva até que um monte fabricado de resíduos obedeça às leis da natureza? Note-se que as árvores teimam em não assentar raízes (consta que é a segunda tentativa de plantação) ... Há melhor metáfora?
A Pedreira Cabeça Gorda é uma das maiores a operar na Serra dos Candeeiros e daqui se retiram sobretudo carbonato de cálcio e magnésio que são incorporados em pastas de dentes, rações para animais, medicamentos antiácidos e muitos outros produtos diários da civilização contemporânea. A extração chega às 3 mil toneladas diárias e o buraco que daí resulta tem uma dimensão tal que precisamos de pontos de referência para compreendermos a sua escala. Uma escavadora a operar no patamar mais profundo, que nos parece mais pequena do que uma figurinha saída de um ovo de chocolate, serve para esse efeito.
Ao mesmo tempo que esta transformação massiva na paisagem é perturbadora, é também sinónimo da segurança e comodidade básica que os recursos daqui retirados nos ajudam a alcançar. Por mais difícil que seja assumir a cumplicidade, esta pedreira significa 30 anos do nosso modo de vida. E este é certamente um dos dilemas que enfrentamos.
Começando pelo mais simples. Todo o mundo digital vive e circula numa estrutura física real: computadores, telemóveis, servidores, cabos de rede, etc. Estrutura essa que tem de ser construída e tem um tempo de vida, ou seja, um pouco por todo o mundo, há explorações de minério (cobre, alumínio, vidro, etc.), poços de petróleo (para plástico e outras fibras sintéticas), fábricas, lojas, centros de reciclagem e lixeiras resultantes de todos esses objetos. Há também toda a energia necessária para o seu funcionamento: barragens, parques eólicos, centrais a carvão, diesel e fotovoltaicas. Algures pelo planeta, há uma paisagem que se transforma para dar corpo a este mundo virtual.
Simultaneamente, vamos alterando o modo como vivemos, nos organizamos e interagimos. Há cada vez mais serviços digitais, o que implica um maior número de pessoas sentadas em frente a um computador, mais edifícios de escritórios e a criação de centros de dados (data centers). A paisagem urbana transforma-se e nascem novos modelos de cidade. O comércio de rua é agora também virtual, a leitura de um jornal ou o encontro com um amigo pode acontecer num ecrã. A paisagem transforma-se e, a par dela, altera-se também o modo como lemos o mundo. Podemos viajar através do Google Street View, podemos aceder a milhares de imagens e filmes de quase todos os lugares, associados a comentários, numero de partilhas e likes. A nossa percepção altera-se, alterando também a nossa leitura da paisagem.
Há ainda uma outra paisagem binária, a dos videojogos e da realidade virtual. Uma paisagem imaginada, hiper-real e instantânea, que compete com o mundo natural. Gradualmente, vivemos cada vez mais numa paisagem de dados que nos afasta do real.
Ao aceder ao Museu da Paisagem está a entrar no Data Center da Covilhã, um estranho cubo enquadrado pela Serra da Estrela. Aproveite a viagem e siga um dos trilhos da serra. Fora deste cubo há uma paisagem infinita por conhecer.
Se te perguntarem qual foi a última paisagem que apreciaste, o mais certo é imaginares-te longe de casa num passeio entre a natureza onde encontraste uma paisagem que achaste bela: uma cascata de água a jorrar de um penhasco ou o pôr do sol na linha do horizonte de uma cidade à beira rio. Escolheste um certo ponto de observação ao longe, de frente para poderes ver tudo e muito provavelmente tiraste fotografias...
Se te perguntarem qual foi a última paisagem que apreciaste, o mais certo é imaginares-te longe
de casa
num passeio entre a natureza onde encontraste uma paisagem que achaste bela: uma cascata de água
a jorrar
de um penhasco ou o pôr do sol na linha do horizonte de uma cidade à beira rio. Escolheste um
certo ponto
de observação ao longe, de frente para poderes ver tudo e muito provavelmente tiraste
fotografias...
Se é assim que imaginas, fica a saber que esta descrição corresponde à ideia mais comum sobre
como nos
colocarmos para apreciar uma paisagem. É, em resumo, a ideia de um postal de férias com vista
panorâmica.