Povoamento

 

Quando o rio Tejo se encontra com o Erges e toca em Portugal, o seu plano de água está a uma cota aproximada de 120 metros. Lentamente, ao longo de um percurso de 230 quilómetros, a água vai descendo até o mar. Este desnível que leva a água parece também levar os homens, pois são poucos os que nesta região se encontram e muitos os que se acumulam junto à foz.

Este fenómeno não é exclusivo do Tejo, se observarmos o restante território, Portugal parece ser um plano inclinado onde a população tomba para o litoral. Esta assimetria tem óbvios reflexos na paisagem e permite uma interessante leitura da relação do homem com a natureza, do povoamento e transformação de um território.

Comecemos, por isso, pelo final do percurso, junto ao vale do Tejo. Ao regressarmos do Observatório de Aves dos Alares, rumo a Castelo Branco, atravessamos uma paisagem que vai sendo, progressivamente, cada vez mais habitada e humanizada. A sucessão de elementos pode assemelhar-se à de um manual de instruções de um brinquedo, onde passo a passo se acrescenta uma camada e se explica o processo de construção.

Partimos de um território selvagem. A paisagem é dominada por uma mata mediterrânica assente em xisto, formada por azinheiras, carrascos, giestas, estevas e rosmaninho. Se nos desviarmos do trilho principal, a marca humana é quase nula, presente apenas nas clareiras abertas a fogo e pasto. A paisagem aqui encontrada pelos primeiros homens não seria muito diferente desta. Os abrigos e alimentos disponíveis são parcos, a fixação humana implicaria a transformação deste lugar.

Seguimos até à abandonada aldeia dos Alares. O que aqui encontramos é um "esqueleto” de uma aldeia. Resta pouco mais que a pedra das paredes das casas e muros. Esta versão crua de um povoado, reduzido à sua estrutura primeira, permite-nos observar de forma mais clara a relação da aldeia com o território e as razões da sua implantação. Situada entre duas linhas de água, que virão a formar o ribeiro das Varetas, a aldeia domina um conjunto de terras de declive suave expostas a sul. O povoamento segue o eixo da ribeira e do vento dominante, de norte para sul. Arejado, com sol, água e boas terras, estão reunidas as condições para a fixação de uma comunidade.

Construiu-se com os materiais disponíveis. As paredes e muros são de xisto, as portas, janelas e estruturas dos telhados de madeira e as coberturas em telha. Há casas de habitação, fornos, palheiros, currais, arrumos, muros de suporte e de delimitação. A aldeia está completa, pronta a ser habitada.

Continuando o nosso caminho, chegamos à aldeia de Soalheiras. A situação é semelhante à dos Alares, embora aqui vale e ribeira sejam mais profundos.

Nos arredores encontramos pomares de oliveiras e algumas hortas. As casas foram melhoradas, já têm reboco e tinta, saneamento e eletricidade. As ruas são calcetadas e há acesso por estrada de asfalto. Soalheiras está ligada à rede automóvel e, através dela, ao mundo.

Seguimos agora de carro. Passamos entre terrenos vedados a arame, onde o rasto das alfaias na terra acusa a presença de tratores. A mecanização da agricultura permitiu que, com menos homens, se dominasse maior área de terra, embora aqui ainda haja muita por dominar. Ao longo do caminho, até ao Rosmaninhal, é maior a área de mato do que a de terra “penteada”. Só já junto à antiga vila é que a presença humana se afirma. Extensas áreas de pasto e forragens avisam-nos da proximidade do povo.

Rosmaninhal, embora agora com estatuto de aldeia, já foi sede de concelho. Tem estrutura de vila e organiza-se em bairros, cada um com a sua capela, que circundam o povoado primitivo em torno da igreja matriz. Aqui já há escolas, restaurante, centro médico, pavilhão polidesportivo e em tempos mais antigos até alguma indústria (nos anos 40 do século XX chegaram a habitar esta vila quase 4.000 pessoas).

A partir daqui será fácil imaginar a vila a transformar-se em cidade, basta passarmos da rua do Espírito Santo de Rosmaninhal até à homónima em Castelo Branco. Agora, do centro histórico desaguamos no Largo do Município, o fórum da cidade, em torno do qual se dispõem a Câmara Municipal, Tribunal, Finanças, Cine Teatro e Centro de Cultura. A cidade cresce em altura e largura. Tem hospital, politécnico, centro industrial e centro comercial. Há rotundas, semáforos, túneis e viadutos. Ligações a outras cidades e a outros destinos, caminho de ferro, aeródromo e autoestrada. A população cresce para mais de 50.000.

É agora mais difícil ler o território, encontrar as linhas de água, o declive do terreno e a direção do vento que aqui determinaram o início do povoamento.

Propriedade

 

Apesar da região do Rosmaninhal, mesmo nos seus tempos mais áureos, ter tido sempre uma baixa densidade populacional (com um máximo, no ano de 1940, de 15 habitantes por km2, quando a média nacional já era de 83 habitantes por km2), tal facto não impediu a disputa pelo uso da terra e sua propriedade. Em 1923, desencadeou-se um conflito violento pela posse das terras dos Montes dos Alares, Cobeira e Cegonhas, que ficou conhecido como a Guerra dos Montes.

O povoamento das terras entre a ribeira do Aravil e o rio Tejo, até então incultas, ter-se-á iniciado no princípio do século XIX, quando famílias pobres oriundas de Monforte e Malpica do Tejo aí se fixaram e criaram os primeiros montes. Deste povoamento nasceram os Alares, Cobeira, Cegonhas e Raiz (atual Soalheiras), cujas terras, mais tarde, vieram a ser reivindicadas pelo Visconde Morão, fazendo dos monteses seus arrendatários.

Foi em 1923 que se terá iniciado o conflito, quando os herdeiros do Visconde venderam a alegada propriedade a diferentes compradores. Uns herdeiros venderam a sua parte aos habitantes dos Montes e outros aos habitantes do Rosmaninhal. Foi então, como os monteses se achavam donos da terra e os do Rosmaninhal com direitos de renda, que se instalou a guerra.

A violência foi aumentando e durante um ano eram frequentes os saques e ataques aos vários montes. Os do Rosmaninhal expulsavam os habitantes, destruíam e levavam tudo o que podiam, até esfolavam ovelhas vivas e chegaram a matar um montês. A guerra foi de tal forma violenta que muitas famílias acabaram por abandonar os montes e foi necessária a intervenção do Governo Civil. Em 1930, as terras foram loteadas e vendidas em sorteio entre as várias populações.

Saiu ileso o Monte de Raiz, hoje aldeia de Soalheiras, que continuou na posse de um único herdeiro. Os cerca de 1.200 habitantes dos restantes montes dividiram-se entre a atual aldeia de Cegonhas (construída perto das Cegonhas Velhas), da aldeia de Soalheiras e por outras aldeias da região (alguns terão ido para Monforte, Malpica, Ladoeiro e Couto dos Correias).

Dos montes tão cobiçados sobram apenas ruínas, resta a paisagem que nos recorda que, tal como a vida, também a propriedade é passageira.