Roteiro

 

Na plataforma, aguardamos pelo próximo comboio regional da Linha da Beira Baixa.

Um trajeto ferroviário pode transformar-se numa narrativa fílmica e a paisagem exterior pode servir como cenário. A sucessão das localidades compõe um filme que se projeta na janela da nossa carruagem.

A viagem começa com moradias dispersas que cobrem a colina da cidade de Abrantes, situada a norte do Tejo. O cenário dá lugar à ondulação das margens brandas, forradas de um arvoredo variado, por vezes esparso, onde despontam eucaliptos novos, que substituem as gerações passadas. Sucede uma berma onde encontramos troncos de eucalipto empilhados, prontos a serem convertidos nas resmas de folhas que nos chegam às mãos. Uns metros adiante, desenha-se a silhueta de uma fábrica que os transforma. Confunde-se com um parque de diversões, com tubagens vestidas de cores contrastantes e chaminés fumegantes, cuspindo vapores de celulose.

Segundos depois, aproxima-se Constância. Dia e noite, a cidade assente sobre a margem íngreme observa o rio Zêzere a encontrar o Tejo. É nesta confluência de águas que, pela única vez, a linha ferroviária sobrevoa o rio Tejo, passando, depois, a acompanhá-lo pela margem direita.

Passados alguns minutos, figura uma ilhota granítica da qual emerge a silhueta maciça do Castelo de Almourol, construção militar que vigia o leito desde a Idade Média. Atravessamos Tancos, cujas casas estão dispostas frente ao rio. As localidades vão-se sucedendo na tela, junto à água, até que se desenham os primeiros casarios de Vila Nova da Barquinha, o destino desta viagem. "Corta" ou continuamos em direção à foz do rio Tejo?

Arterial

 

Transporte que nos permite dissecar um país rasgado por nervuras de ferro, o comboio faz-nos percorrer um território vasto, composto por tecidos de paisagens muito diversificadas. Devido à crescente oferta de outros meios de transporte, concebidos para percorrer largas distâncias, os caminhos de ferro têm vindo a ser esquecidos. E, no entanto, a função vital destas artérias férreas de fazer circular muitos passageiros e mercadorias de uma vez só, constitui uma opção definitivamente menos poluidora para o ambiente e menos impositiva na paisagem.

Optar pelo transporte ferroviário é votar para que se prolongue a integridade das paisagens. Basta observar como carris, estações ferroviárias e apeadeiros mantém um diálogo assertivo com a paisagem onde se inserem. Se atentarmos ao trajeto das linhas de ferro, verificamos que poderiam ter sido riscadas sobre a sinuosidade dos montes, dos vales e dos rios, enfatizando as costuras da sua geografia física.

Não fossem as questões ecológicas e paisagísticas motivo suficiente para nos fazer optar pelos fluxos ferroviários, também a vertente cénica deste modo de viajar poderá ser tida em conta.

Sobre o tempo histórico da paisagem, desenhamos as linhas da nossa perceção temporal. Se o percurso do espaço em função do tempo é constante, a capacidade de memorizar os acontecimentos fica ao critério dos nossos sentidos. Que imagens da travessia conseguimos reter?

Façamos do percurso o próprio destino.