Refúgio

 

Quando é que um lugar passa a ser nosso? Não nosso como algo de que somos proprietários, mas porque está lá a nossa marca, visível ou secreta: um lugar favorito para estender a toalha na praia ou um baloiço preso numa árvore. As marcas também podem ser coletivas e dizer respeito a encontros habituais num parque ou a pinturas num muro (feitas em grupo, claro). Por isso se diz que as localizações existem sempre, mas os lugares, esses são criados por alguém, fruto de uma relação mais íntima com o espaço.

Em Marvão, onde menos se espera, encontrámos um lugar com essa marca. Fica a meia encosta, junto à Capela da Nossa Senhora da Estrela, onde a vista infinita sobre o Alto Alentejo e Espanha já enche os olhos.

Um penedo granítico com cerca de três metros de diâmetro apoia-se num outro mais pequeno, criando uma cavidade entre ambos, na qual caberiam, no máximo, três pessoas de pé. O que nos chama a atenção nesta disposição geológica é o facto de exibir uma cerca improvisada de ripas de madeira. Na cavidade, ensaia-se um abrigo: duas cadeiras retiradas ao ferro velho, uma tábua com quatro pés baixinhos, a que o léxico pede que chamemos mesa, e umas estantes improvisadas que guardam o que se achou que é para guardar. Aos pés deste sítio vagamente habitável, estende-se uma paisagem invejável.

“Uma pessoa chega aqui e fica de boca aberta, deslumbrada”, anuncia um homem de idade que, instantes antes, ainda estava junto à cancela das traseiras da capela. Ficamos a conhecer o senhor João Reia, construtor deste lugar, e a conversa que teve connosco permitiu-nos compreender o que está além da aparência.

Este é o seu refúgio. Apesar dos 94 anos, vem para aqui quase todos os dias, pois está em excelente forma física. Mora no lar do Convento da Capela da Senhora da Estrela, mas viver, vive aqui, onde pode apreciar a paisagem. Lê e escreve na sua “mesa de escritório”, como lhe chama. Sobre escrever, confessa: “adoro, as memórias já estão compiladas, desde os três anos, quando fiquei órfão da minha mãe.”

Depois da morte da mulher, há quatro anos, precisou de encontrar uma ligação à vida. Procurou-a num silveiral, entre os dois penedos virados para o horizonte. Afiança que não imaginamos o estado em que estava. “Queimei as silvas todas e, com as minhas manhas e maneiras, minei-lhes a raiz. Depois fazendo uma alavanca com um arame, arranquei-as todas.” Cada pormenor da sua construção é fruto da criatividade e capacidade de improvisação. Percebe-se o orgulho quando diz “tenho gosto quando começo a fazer uma coisa”. Aqui exercita o futuro, porque gosta “de ir melhorando as coisas”. Para breve está a colocação de um toldo de plástico para ficar mais abrigado da chuva.

De um não lugar, este sítio passou a abrigo. Mas em - bora seja uma apropriação visível, é ignorada por outros, porque ali tem vindo a ser largado entulho durante a noite. Ao mesmo tempo que se tornou um lugar de alguém, permanece ignorado por outros.

Memória cartográfica

 

Nesta região raiana, entre o Alentejo e a Estremadura espanhola, ficou a infância e adolescência do Sr. João Reia. Sabe apontar-nos, sem hesitações, o tracejado imaginário da fronteira, entre as cumeadas das serras e o percurso do rio Sever, e sabe indicar-nos ao longe que aldeias pertencem a que país.

Um dos episódios mais marcantes da sua vida também o traça nos vários planos de fundo à nossa frente. Aos 16 anos, durante a guerra civil de Espanha (1936- 1939), foi contrabandista, percorrendo a pé, vezes sem conta, dezenas de quilómetros à noite. Conta que avançava “por esses calhaus e serras fora”, com tabaco e café às costas, os produtos mais cobiçados pelos espanhóis. Não foram poucas as horas caminhadas no escuro, com água até aos joelhos, nas zonas de planície que alagam no Inverno. É caso para questionar de onde viria o sentido de orientação, a coragem e a força física.

Confessa que “não tinha medo de nada”, porque perseguia-o “uma grande sede de ser homem”, mas admite que várias vezes correu risco de vida. Apontando na direção de Valencia de Alcántara, na Estremadura espanhola, conta que, certa vez, num cortijo onde entregavam o contrabando, ele e um companheiro tiveram de fugir dos tiros dos falangistas (apoiantes do regime franquista). Treparam uma figueira, saltaram o muro da quinta e mergulharam no rio, mas só ele conseguiu escapar.