Contraste

 

A travessia fluvial Belém-Porto Brandão-Trafaria assegura a ligação entre as margens da foz do Tejo a escassos quilómetros do rio se encontrar com o Atlântico. A abertura para o mar que a foz nos dá a ver faz com que esta viagem tenha um sabor marítimo.

Nesta travessia fazem-se várias viagens numa só. Chegados à Estação Fluvial de Belém recuamos no tempo. A arquitetura, em linhas simples, o pavimento de mármore em padrões branco e preto, assim como os bancos de madeira destinados a quem espera transportam-nos para 1940, altura em que foi construído este cais de apoio à Exposição do Mundo Português.

O número de passageiros que segue para a Margem Sul conta-se pelos dedos de uma mão, numa inesperada falta de movimento humano que amplia esta sensação de paragem no tempo — afinal este é um terminal de transporte de uma cidade capital.

Saber que um ferry de grandes proporções vai transportar tão pouca gente e tão pouca carga (por vezes nem carros leva) soa a desperdício, mas ao mesmo tempo  a privilégio, pois ainda dispomos de um barco que nos permite cruzar o rio como era cruzado originalmente desde que o ser humano se fixou nestas duas margens. É por isso que esta viagem de escassos 30 minutos ainda carrega o código genético da personalidade marítima de Lisboa e da história do Tejo, o de ter sido, no passado, a única estrada para o comércio nacional e intercontinental e de união entre as margens.

Quando o catamarã larga o cais, somos atraídos pela ilusão de que parece ser a terra a afastar-se, porque na água perdemos a referência habitual da velocidade de deslocação. Esta é a única perspetiva “térrea” do horizonte da zona ribeirinha da cidade, arrumada e luminosa, com as suas relíquias patrimoniais antigas, lado a lado com edifícios de arquitetura mais contemporânea.

Pelo tempo que levamos a alcançar o meio do rio, tomamos melhor consciência da sua largueza, a mesma que viabilizou a intensa azáfama fluvial e marítima até aos anos 70 do século passado. Uma marca profunda desta paisagem que foi bruscamente alterada pela construção da Ponte 25 de Abril.

De corpo já voltado para os cais de Porto Brandão e da Trafaria, apercebemo-nos de que o barco quase vazio que vem da capital é uma metáfora do horizonte abandonado e empobrecido que se aproxima e do isolamento destas comunidades. Por muitas razões, só uma margem prosperou. Estes barcos ainda levam algo daqui — de manhã vimos uma vintena de carros e de pessoas a seguir na ligação para Lisboa — mas pouco parecem trazer.

Atracados

 

Atualmente dois catamarãs asseguram esta travessia, o Lisbonense e o Almadense. No total, são poucos os que a utilizam nos seus percursos diários devido aos horários pouco convenientes, afirmam os residentes, mas juram que para as populações de Porto Brandão e Trafaria esta ligação à capital é essencial. Antigamente, os ferries partiam de vinte em vinte minutos, agora é só de hora a hora “e estava para ser de duas em duas horas”, afiança-nos o Sr. Hernani, ex-autarca da Trafaria. Mas “a população organizou um movimento” e assim se conseguiu ganhar uma hora. Também termina demasiado cedo. O último barco sai da Trafaria às 21h30 quando anteriormente era à 0h30, o que, na sua opinião, foi também um revés para a animação desta terra, porque na área da restauração “havia oferta à noite”.

Houve um tempo em que um ferry levava os carros até ao Cais do Sodré — sempre posicionava os passageiros numa zona central da cidade — mas medidas de descongestionamento da zona histórica da cidade obrigaram a que fosse transferido para Belém. Embora este seja um destino menos vantajoso, ainda assim o barco enche-se com carros nas primeiras ligações matinais, já que este transporte é preferível à ida pela Ponte 25 de Abril, um percurso não só mais longo como sujeito a filas.

Com uma vivência indissociável do rio Tejo, até pela atividade pesqueira que prosperava em tempos, os habitantes da Trafaria esperam não ficar atracados.