Pertença

Na altura em que visitámos a Herdade do Rio Frio estava pendente um pedido de insolvência. Entretanto já foi posta à venda, colocando em risco o direito à habitação das famílias que ainda vivem dentro da herdade. São estas pessoas que aqui residem que dão o rosto a este espaço abandonado, são elas que nos conduzem pelo fio com que se teceu a existência e a identidade deste lugar.

Não é exagero falar na queda de um império e com ele de uma comunidade e de um modo de vida.

Com cerca de 5200 hectares, a Herdade do Rio Frio foi, em tempos, uma das maiores e mais prósperas de Portugal, conhecida pela maior vinha contínua e a maior mancha de montado artificial do mundo. Como símbolo de modernidade das técnicas de organização e produção agrícola, chegou a dar trabalho a mais de cinco mil pessoas, entre ranchos que vinham de fora para trabalho sazonal e os camponeses que se puderam instalar na propriedade e com quem a herdade podia contar o ano inteiro, uma vida inteira.

Aqui a labuta começava de madrugada e prolongava-se até ao pôr do sol. “Vínhamos do trabalho a correr lavar roupa, já de noite. Nem sabíamos se tinha surro ou não tinha, sei que esfregávamos tudo com sabão” recordam, a rir, as mulheres reformadas com quem conversámos. A dureza do trabalho era contrabalançada com o facto de a herdade providenciar ordenado garantido e quase tudo para viver, funcionando como um centro autossuficiente. Havia uma enorme variedade de produção agrícola (cereais, arroz, batatas, vinho, fruta, tabaco, cortiça, etc.), de criação de gado e de cavalos puro-sangue e de materiais de construção como cal, tijolos e madeira para as quais dispunham de adegas, fábricas de descasque de arroz, cavalariças e carpintarias. Para servir as restantes necessidades da comunidade de trabalhadores instalou-se uma escola de primeiro ciclo, hospital, esquadra, padaria, capela, café, piscina e uma sociedade recreativa, um luxo no contexto rural do país dos anos 60 do século passado. “Tínhamos tudo. Nós não sabíamos viver fora daqui, nem precisávamos”, resume uma das habitantes.

Mesmo que escassos, não faltavam momentos de festa, ficando claro que o baile de Carnaval da Herdade do Rio Frio, na altura o mais famoso das redondezas, é o que traz mais nostalgia. “Quando era meia noite, tínhamos de fechar as portas porque já não cabia mais ninguém. Vinham pessoas de Lisboa e do Barreiro, imagine”, contam. “Era dançar até de noite. Às vezes nem nos deitávamos. Íamos diretamente dos bailes para o trabalho.”

As camadas trabalho, vida privada, lazer sobrepunham-se para produzir raízes profundas nesta paisagem, por isso, apesar da vida áspera, sobressai um imaginário coletivo traduzido deste modo por uma das entrevistadas, “Isto aqui era muito bonito, era um orgulho podermos dizer: somos da Herdade do Rio Frio!”. É difícil encontrar maior sentido de pertença a um lugar.

Foi com muita angústia e tristeza que assistiram à derrocada desta “cidade” – como era classificada pelas pessoas fora da herdade – nos últimos 50 anos. A herdade não conseguiu adaptar-se e renovar-se face à perda de importância da agricultura local e às exigências da economia global. Aos poucos foram fechando serviços: a escola, o hospital, a GNR e começaram a despedir pessoas. Hoje já só restam 44 trabalhadores, 35 deles ainda a residir na herdade, aos quais se juntam 55 famílias de ex-trabalhadores que ainda dispõem do direito de habitar as casas que ali foram autorizadas a construir, mas cujo chão não lhes pertence. Todos temem perder a casa, para muitos a casa onde nasceram.

A dimensão em tamanho e número de estruturas e instalações de apoio, agora em ruínas, testemunham a glória passada. A operar resta o célebre Palácio do Rio Frio, separado da sociedade agrícola, e que vai servindo para alojamento turístico. O autocarro municipal ainda pára diariamente na herdade, numa paragem perto da residência dos habitantes; tornando-a, para este efeito, uma aldeia como outra qualquer.

O marido de uma das mulheres do grupo juntou-se a nós. À pergunta se se considera um riofriense, este homem de 79 anos responde: “Eu? Claro que sou riofriense. Há dias que até choro!”. Nada descreve melhor a íntima identificação de alguém com a paisagem que habita.

O que acontece se nos tiram o lugar à nossa identidade?