Nascente

 

Quando deixamos a vila de Manteigas em direção à Serra da Estrela, sentimo-nos a entrar num território ainda dominado pela natureza. Apesar da presença milenar do ser humano nesta região, a dureza do relevo e do clima não permitiram uma ocupação permanente deste espaço, que preserva ainda o seu carácter natural.

A pastorícia, atualmente com pouca expressão, terá sido a atividade humana que mais transformou esta paisagem (em 1955 pastavam aqui quase 7000 cabras e ovelhas). Pastores e rebanhos habitaram o planalto, reclamando para si o território das antigas alcateias. Com o auxílio do fogo foram criadas pastagens e com as rotas diárias dos rebanhos desenhados caminhos pela serra. São esses caminhos que ainda hoje utilizamos para chegar ao “coração” da Estrela, fora do alcance da estrada de alcatrão.

No Covão d’Ametade abandonamos o conforto do carro e enfrentamos a serra corpo a corpo. A força telúrica da paisagem impõe-se. Junto ao Cântaro Magro, podemos finalmente ajustar a escala do Homem com a da natureza. Não restam dúvidas, somos minúsculos. O rio Zêzere, ainda em forma de ribeiro, indica-nos o caminho. Sugere a ideia de origem, de um lugar onde o tempo e a vida começam. A nascente.

Seguimos a pé, em busca desse lugar simbólico. Queremos ver de perto o início de um rio e de toda a vida que acontece ao longo do seu curso. À medida que vamos subindo e nos afastamos da estrada, somos envolvidos pela montanha, estamos definitivamente num território livre que ainda não foi dominado. Aqui o trilho não é em forma de linha, é mais um tracejado que alterna a vontade de se caminhar com a vontade da rocha granítica. A progressão é lenta e a escala métrica ganha um novo significado.

Ao fim de caminhados 1200 metros, chegamos ao Covão Cimeiro. Neste local estamos rodeados por um anfiteatro rochoso entre o Cântaro Magro e o Cântaro Gordo. O espaço assemelha-se a um gigantesco funil de granito que faz convergir toda a água para o seu centro. Mas a montanha não serve apenas de caminho para a chuva, é também uma enorme esponja de plantas e terra que absorve toda essa água, para depois a libertar gradualmente através dos rios e lençóis freáticos. Aqui, a montanha é mãe que guarda a água para os dias de sede.

Clima e Paisagem

 

A forma em “U” do vale do Zêzere revela uma antiga paisagem de gelo com neves eternas e glaciares. Há cerca de 19000 anos, existiu aqui um dos maiores glaciares da Europa, com uma extensão de 13 quilómetros, entre o Covão d’Ametade (antiga lagoa glaciar) e a vila de Manteigas (onde iniciava o processo de dissolução). Este vale, moldado durante a última glaciação, dá-nos conta de uma transformação lenta, da erosão do gelo que caminha sobre a rocha, e da relação entre o clima e a paisagem.

As alterações climáticas que vivemos na atualidade terão efeito também na Serra da Estrela, sendo já possível antever novas transformações na paisagem. Com o aquecimento gradual das temperaturas médias, os gelos permanecem menos tempo no cimo da serra, há menos água corrente durante o verão e a fauna e flora vão-se alterando. Daqui a alguns anos, alguém escreverá que houve um tempo em que todos os anos nevava na Serra da Estrela.