Enleado de fios

 

Pé ante pé, subimos as escadas de um passadiço pedonal que nos eleva a partir da estação ferroviária do Entroncamento. Estamos suspensos e podemos reparar na malha gráfica que caracteriza a disposição das linhas de ferro. Seremos capazes de seguir o trajeto de cada carril através do nosso olhar? Ou será fácil perdermo-nos na encruzilhada de fios? Que impacto psicológico têm as linhas sobre nós, quando as observamos?

Os nossos olhos seguem os caminhos formados pelos carris. De quando em quando, convergem num único ponto. O contorno tão definido destes filamentos remete-nos para a confluência de rios e  seus afluentes, numa bacia hidrográfica que se estende, sem princípio nem fim.

Depois de termos seguido o trajeto dos fios dúcteis, são eles que agora nos conduzem. Somos convidados a deslizar sobre as linhas, desfiando o espaço e o tempo. Imaginamos em que lugares hão-de voltar a bifurcar ou a convergir. Interrogamo-nos se, um dia, alguma serra inversa ou oceano implacável lhes dará termo.

Por sermos indiferentes ao destino, confiamos nos apeadeiros, lugarejos, socalcos, rios e montanhas que estes vetores nos dão a conhecer. Podemos adivinhar as cordilheiras que se seguem, através do contorno que a linha decide. O mistério persiste e gostaríamos de estimar quantas mais paisagens estão ligadas pela rede fiada que parece desfazer-se no horizonte.

Os meandros repetem-se no infinito e transportam-nos para longe de nós.

Como nasce uma cidade?

 

Observemos a cidade a partir de uma ponte pedonal em ferro, pintada de cor clara, que sobrevoa as linhas férreas.

Se olharmos para lá do Museu Nacional Ferroviário, podemos reparar em vastos complexos industriais.

Armazéns de tijolo e chaminés altas parecem dissolver-se no casario que oscila entre edifícios construídos no final do século XIX e moradias erguidas um século depois.

Viremo-nos de costas. Contemplemos o que a cidade nos oferece a sul.

Uma área densa, onde predominam prédios de habitação. A arquitetura é inspirada nas metrópoles de referência. Erguem-se construções que poderíamos encontrar noutras cidades. A geometria dos edifícios é vasta e a métrica inconstante. Muitas das fachadas são coloridas e contrastam com os letreiros do comércio local.

Mas o que fez nascer esta cidade?

A Estação Ferroviária do Entroncamento foi inaugurada em 1862 com o objetivo de ligar as cidades de Lisboa e Porto a Badajoz. A linha do Norte passou a encontrar o Caminho de Ferro do Leste, neste preciso lugar.

Ponto de encontro, de passagem ou de mudança de carruagem, esta estação viu chegar e partir mares de passageiros. Testemunhou greves, esperas e atrasos. Por aqui era obrigatório passar quem viesse do estrangeiro. Numa época em que as viagens aéreas ainda não estavam democratizadas, o voo era rente ao solo, a pouca terra.

A cidade que começou do zero, foi-se alastrando. Vemos hoje edifícios cronológicos, que nos adiantam as tendências construtivas de cada década dos finais do século XX. Por não existirem muitas construções anteriores à edificação da estação férrea, não constou a necessidade de continuar, manter ou preservar estruturas. Com as vontades, ergueram-se prédios e moradias, sem pruridos. Esta terra não é feita de pretensiosismos e o nome que lhe coube, é prova certa.