Resiliência

 

Para chegar à aldeia da Palhota, é necessário transpor uma muralha, que parece separar dois mundos: um mundo onde impera a lei dos homens e outro sujeito à vontade do rio. No mundo dos homens, a terra é firme e aí nasceram pequenas localidades assentes na planície ribatejana.

No mundo do rio, nada é perene, a água avança e recua ao sabor das marés e das estações. Mesmo as povoações — do mundo dos homens — eram anualmente inundadas. Quando ocorriam chuvas contínuas, os campos, que já eram naturalmente irrigados pelo rio, ficavam impedidos de absorver a água que caía dos céus. Hoje, com as transformações a que a paisagem está sujeita, as inundações são menos frequentes.

No mundo do rio, encontramos construções que revelam adaptação e resiliência por parte de quem o habita. Na sua maioria, erguidas pelos próprios pescadores, as estruturas em palafita foram assentes sobre pilares, para suportar a força das cheias. Inicialmente feitos com estacas de madeira, estes pilares podem apresentar alturas variáveis. Entre o solo e o piso elevado da casa, era comum avistar um pescador, em pé, a guardar o seu barco debaixo da casa.

O cais, que se estende como um braço Tejo adentro, permite percecionar os desenhos sugeridos pela corrente do rio. Quando percorremos o passadiço até à última tábua, sentimo-nos numa varanda sobre a água, tentados a nela permanecer para na companhia dos velhos salgueiros que pousam sobre as margens. Alguns barcos, para fins lúdicos ou económicos, estão atracados às estacas do cais. Se alguns habitantes ainda pescam, a grande maioria já não depende do rio para viver.

É possível verificar uma crescente oferta de rotas turísticas que ligam algumas aldeias de passado avieiro (a cultura identitária dos pescadores desta região). Nas restantes localidades, poucos são os vestígios desta cultura particular, se não reconstituições de casas modulares, que nos revelam um revestimento de ripas de madeira nova.

Migração da paisagem

 

Os primeiros habitantes das aldeias sujeitas à vontade do rio eram pescadores originários da praia de Vieira de Leiria, que se auto proclamavam como "avieiros". Desde meados do século XIX, estes homens deslocavam-se por mais de uma centena de quilómetros, a pé ou de barco, em busca de uma margem próxima, que não fosse voltada ao oceano, por forma a poderem continuar a pescar, resguardados do clima agreste dos meses de inverno.

Numa fase inicial, eram as estações que ditavam este fluxo. Os meses em que as famílias de pescadores migravam para a lezíria eram literalmente vividos no interior do seu barco: nunca havia grande agitação nas águas fluviais, o que permitiu que fizessem do casco flutuante (que media, geralmente, cerca de seis metros de comprimento) o seu lar e, ao mesmo tempo, fonte de sustento.

No início do século XX, verificou-se uma sequência de invernos particularmente se - veros. O mar não dava alimento e sustento, tão pouco. Os avieiros passaram a fixar-se na lezíria por temporadas maiores, erguendo abrigos, agora em terra. As estruturas simples (pois já possuíam a sua casa-barco) eram feitas a partir do encaixe de canas que encontravam nas margens do Tejo. Assim se explica a designação da aldeia avieira das Caneiras, erguida a sul de Santarém. Pela mesma razão, esta aldeia foi denominada de Palhota, fazendo jus a um dos materiais que a fizeram erguer.

A necessidade de tornar os seus abrigos menos efémeros e a vulnerabilidade às cheias do Tejo levaram a que as canas fossem substituídas por estacas de madeira. Hoje, às casas somam-se acrescentos de cimento e remates de alumínio. Assistimos a uma contínua necessidade de tornar a habitação mais perene. Talvez seja esta necessidade um desejo de controlo sobre o tempo de vida dos materiais que manipulamos.

Muitos pescadores que eram, inicialmente, nómadas sazonais, deixaram o oceano e passaram a habitar permanentemente o mundo do rio. As suas casas, revestidas de ripas de madeira zelosamente pintadas de cores garridas, remetem para os abrigos da praia de Leiria. Com a memória do lugar que os viu nascer, os pescadores fizeram migrar a sua paisagem de origem para uma nova localização, igualmente vigiada pela água.