Genius Loci

 

Assim que avistamos pela primeira vez o monte da aldeia de Monsanto há uma transformação no modo como lemos a paisagem. A partir do momento que iniciamos a viagem de aproximação ao monte-ilha, todo o território entre nós e o monte ganha outro significado. Os montados e os olivais que se avistam são agora também tempo e distância. A estrada entra num bailado com Monsanto, que ora afasta ora aproxima, ora esconde ora revela.

A presença visual do nosso destino antecipa a chegada e entramos em modo de navegação à vista, como se estivéssemos num barco. A campina de Idanha proporciona-nos uma chegada em águas calmas e em linha reta até à misteriosa ilha. Já perto da margem reduzimos a velocidade e procuramos um local para atracar. Mas não é o castelo nem a tão portuguesa aldeia de Monsanto que procuramos, deixemos isso para mais tarde, o que nos traz até aqui é um outro lugar.

A paisagem que nos espera é especial. Pede silêncio e a atenção dos sentidos. O ideal é fazer o troço final do caminho a pé, para irmos mergulhando aos poucos neste espaço singular e conseguir identificar todos os elementos que o caracterizam.

Se analisarmos uma paisagem como se de um corpo se tratasse, poderemos desvendar a sua anatomia, constituída por diferentes unidades. Primeiro as grandes unidades que a estruturam (cabeça, tronco e membros), depois, com mais detalhe, sub-unidades que poderemos dividir até à mais ínfima escala (braço, mão, dedo, falange). Estas diferentes paisagens, que pertencem ao mesmo corpo, dependem e resultam umas das outras e deverão ser lidas como parte de um todo, mas cada uma será também detentora de um sentido de individualidade, de uma força e caráter próprios. Esta natureza intangível de cada lugar pode ser designada por genius loci ou “espírito do lugar”. A expressão remonta à época romana, referindo-se na sua origem ao espírito protetor de um lugar.

Em São Pedro de Vir-a-Corça, o significado de genius loci revela-se de uma forma evidente. Somos confrontados com uma paisagem de uma força e carácter ímpares. Situada na base do Inselberg granítico de Monsanto, envolta por grandes penedos e por um antigo bosque de sobreiros, a inesperada capela românica de São Pedro Amador, ou São Pedro de Vir-a-Corça, reforça a aura deste lugar, conferindo-lhe uma relação rara entre o natural e o sagrado.

Aqui o monte-ilha ganha um novo sentido, de atalaia que protege e nos guia a tão mágico lugar.

Vir-a-Corça

 

A ermida de São Pedro de Vir-a-Corça é um templo de estilo românico, construído entre os finais do século XII e início do século XIII. A par da contemporânea Capela de São Miguel, situada junto ao castelo de Monsanto, esta ermida é, cronologicamente, um dos últimos exemplos do românico português, numa época em que o gótico já estava a iniciar-se.

Foi local de feira e romaria desde o século XIII (D. Dinis concedeu-lhe carta de feira em 1308, muito provavelmente consagrando um uso já existente).

Sabendo-se pouco sobre a sua origem, alguns autores relacionam a sua fundação com a pré-existência de uma villa romana, com o nome de “villa-corça”. Outros relacionam o topónimo e fundação da capela com uma origem ermítica, baseada na lenda que narra a história de um ermita, chamado Amador, que terá salvo uma criança do demónio, cuidando dela e alimentando-a com o leite de uma corça que por ali apareceu em resposta às suas preces.

Junto à capela há ainda um singular campanário, construído em cima de um penedo, um abrigo encaixado na rocha — possível morada do ermita — e duas covas retangulares. Desconhece-se a função destas cavidades, mas poderão ser testemunhos de uma sacralização mais antiga deste lugar, tendo eventualmente servido de lagaretas de ablução (rito de purificação) a deuses pré-históricos.