Linha de tempo

 

Percorrer o paredão de uma barragem é como caminhar sobre uma linha de tempo, onde, com o cimento, se separa o "antes” do “depois”. De um dos lados, podemos conhecer o carácter original do vale, quando o curso de água corria livremente e, do outro, compreender a transformação da paisagem provocada pelo lago artificial. O contraste entre o plano da albufeira e a linha de água, que recupera o seu estado selvagem após breve paragem, é particularmente intenso em Santa Luzia. Rasgadas pela água durante milhões de anos, as escarpas que formam o vale são quase verticais, com uma altura superior à distância que as separa.

De certo modo compreende-se a intenção dos engenheiros em voltar a unir a pedra que a água separou, repondo assim a ordem original. Com a barragem foi recuperado parte do cenário pré-existente, quando, há muito, água e pedra aqui se encontraram pela primeira vez. Sim, porque esta albufeira, que agora nos parece artificial, já aqui existiu em versão natural, terminando numa enorme queda de água. Foi esta água, sedutora, que pacientemente foi convencendo a pedra de que viajar é melhor que permanecer e, assim, aos poucos, fragmento após fragmento, a pedra foi seguindo rio abaixo em busca de novos lugares.

Ficamos então na dúvida sobre qual será a paisagem original, se a albufeira reposta pelo homem ou o vale escavado pela água. Quando regressamos pelo paredão, a linha de tempo transforma-se, agora a albufeira é “antes” e o corte na rocha “depois”.

Energia

 

Quando, na década de 30 do século XX, se iniciou a construção da barragem de Santa Luzia ainda eram poucas as localidades portuguesas com acesso à luz elétrica. Para a grande maioria da população, as noites sem lua eram de uma escuridão profunda e a palavra energia ainda se confundia com a força do corpo e dos braços. A eletricidade, aqui simbolicamente anunciada por Santa Luzia, veio alterar radicalmente o modo como vivemos e, consequentemente, a paisagem do espaço que habitamos.

Desde a inauguração da barragem de Santa Luzia, em 1942, até aos dias de hoje foram construídas em Portugal mais de 150 barragens. A produção de eletricidade multiplicou-se por cem, passando de 500 GWh para mais de 50.000 GWh. Construíram-se também centrais termoelétricas, parques eólicos e centrais fotovoltaicas. O país foi atravessado por milhares de quilómetros de cabos elétricos. Todas as casas foram equipadas com os mais diversos aparelhos. Iluminação, frigoríficos, máquinas de lavar, ferros de engomar, aspiradores, televisores, aquecedores, computadores, elevadores e muitos outros facilitadores.

Parte da nossa vida acontece num mundo digital. Parte na nossa vida depende da eletricidade, que chega a nossas casas como que por magia. Mas do lado de lá das tomadas há um mundo real que se transforma para satisfazer tão grande sede de energia.

Na paisagem, a eletricidade não é invisível e em pouco tempo ganhou grande expressão. A cada muro de barragem corresponde um vazio de tamanho igual, algures numa serra, aberto numa pedreira. A cada albufeira corresponde um vale, onde em tempos corria livre um rio. Os cumes das serras passaram a girar ao vento e todo o território está povoado por postes e linhas que correm em todas as direções.

Não é fácil encontrar um lugar em que não esteja presente esta nossa nova energia. O que fazer então? Regressar à escuridão não parece ser solução. Quem sabe, um pouco mais de cerimónia antes de ligar o botão?