Caos de blocos

 

À medida que subimos a Serra da Gardunha, ficamos com a sensação de que aqui as leis da gravidade funcionam ao contrário. Não queremos com isto dizer que o corpo não se cansa, a sensação resulta do modo como o granito se dispõe pela serra. Quanto maiores as rochas mais alto as encontramos, como se aqui as coisas pesadas subissem.

Nesta paisagem dominada por penedos graníticos surgirá, frequentemente, aos que aqui caminham, a dúvida sobre o modo como estas rochas cá vieram parar. Habituados a um mundo em movimento, onde tudo se transporta e todos se deslocam à velocidade de uma low cost, quase perdemos a ideia de que há coisas perenes. Estes penedos são de uma Gardunha resiliente, são a parte da serra que vai resistindo à erosão pela chuva e pelo vento.

Também a pele das serras envelhece. No início é uma rocha única, lisa e jovem. Mas com o tempo vai ganhando rugas em forma de fenda. Estas fendas, a que os geólogos chamam de diáclases, vão alargando e isolando os blocos graníticos, como se a serra fosse uma pedreira viva, criando os chamados caos de blocos. Depois, é só aguardar que a chuva e o vento façam o seu trabalho. Escultores pacientes, que, entre o “caos”, vão arredondando as arestas e criando todo o tipo de morfologias.

Os homens, que sempre gostaram de chamar as coisas pelos nomes, foram batizando os penedos mais singulares. Crista do Galo, Cabeça do Gigante, Cérebro, Padaria, Dominó ou Pedra Fendida são alguns exemplos da toponímia deste lugar. A maior concentração destes geomonumentos encontra-se na zona de Castelo Velho, ao longo do percurso pedestre da Rota da Gardunha, entre Casal da Serra e Castelo Novo.

Charneira

 

Mestre da observação e leitura da paisagem, Orlando Ribeiro descreve-nos, em “Portugal, o Mediterrâneo e o Atlântico” (1945), um país que se divide em dois. Um Portugal de influência mediterrânica e outro de influência atlântica, no que respeita ao clima, vegetação, agricultura e consequente ocupação humana e modos de vida. Esta divisão é acompanhada pela linha do Tejo, que de um lado se encosta a um contínuo de serras e do outro contempla o horizonte nas planuras do Sul.

Esta linha de charneira é muito perceptível na Serra da Gardunha (1227 metros). A encosta norte da serra é densamente arborizada, onde em tempos dominaram soutos e carvalhais, avistando-se a Serra da Estrela e todo o conjunto montanhoso do maciço central. Na encosta sul, domina o granito, com vegetação rasteira, avistando-se a planície que segue até ao Alentejo, território de montado de azinheiras e sobreiros. O contraste entre os dois lados da serra resulta desta conjugação entre o relevo e o clima, que faz com que os ventos húmidos vindos do Atlântico se encontrem aqui com os ares mais quentes e secos do Mediterrâneo.

Assim, apesar da fraca distância, o povo da “terra fria” teve sorte diferente das gentes da “terra quente”. De um lado da serra houve que saber resistir à neve e privações do inverno e do outro suportar o calor e as carências de água do verão. Houve também quem preferisse vida nómada e ao longo do ano fosse alternando entre as terras de sequeiro e as terras de regadio. Grandes rebanhos chegaram a habitar esta paisagem, fazendo a transumância duas vezes ao ano, ora para o planalto fresco da Serra da Estrela, nos tempos de verão, ora para a verde Campina de Idanha, nos tempos de inverno.

Não será por acaso que o nome Gardunha significa refúgio (do árabe "guardunha"), se num dos lados da serra os tempos forem difíceis, pode-se sempre procurar refúgio no lado de lá.