Autóctone

 

Ao percorrermos a estrada entre as aldeias de Quadrazais e Malcata durante o outono, somos surpreendidos com uma paisagem pouco habitual. A mata de carvalhos que acompanha o caminho apresenta-se, entre outubro e novembro, em tons de amarelo, castanho e dourado, criando um cenário que nos remete para paisagens de latitudes mais a norte. Os carvalhais são hoje tão raros na paisagem portuguesa que quase parecem estranhos no nosso território. Em muitas zonas do país, a toponímia será o único testemunho que resta desta floresta autóctone, que outrora dominava.

Atualmente, a floresta de carvalho ocupa apenas 0,7% do território português. Se juntarmos a esta os seus familiares do sul, os sobreiros e as azinheiras em modo de montado, esta percentagem sobe para cerca de 12%. A floresta autóctone, que dominou a paisagem do território a que hoje chamamos Portugal, desde o final da última glaciação até ao início da idade moderna (século XV), está em franco declínio e com ela todo o ecossistema que lhe está associado.

A transformação da floresta de carvalhos numa nova paisagem terá começado logo durante o Neolítico, com a necessidade de libertar terrenos para a fixação dos primeiros povoados e respetivas áreas de produção agrícola e pastoreio. O que antes era um contínuo de floresta autóctone, aos poucos foi sendo dividido em áreas e usos diferenciados. Este modo de ocupação e utilização do território pode ainda ser observado em algumas aldeias serranas que mantêm a divisão do espaço em quatro áreas distintas, batizadas pelos romanos como urbe (povoado), ager (hortas e campos de cultivo), saltus (zonas de pasto e agricultura menos intensiva) e silva (baldios com mata autóctone para produção de madeira). Os carvalhais terão, assim, permanecido nas áreas de silva durante longos séculos, até que, no início da idade moderna, com a época dos Descobrimentos, sofreram um novo e severo desbaste. Estima-se que terão sido derrubados mais de cinco mil milhões de carvalhos para a construção naval. Esta regressão nunca mais parou, tendo-se acentuado, já durante o século XX, com a plantação de pinheiro-bravo no âmbito do Plano de Povoamento Florestal do Estado Novo (responsável pela criação de um dos maiores pinhais contínuos da Europa) e, mais recentemente, com a sua substituição pelo eucalipto e outras exóticas vindas de outros continentes.

Hoje, o que é autóctone parece exótico. O processo de humanização está quase concluído, resta pouco mais de 0,7% (apenas alguns segundos se se tratasse de um download). O que virá a seguir?

Extinção

 

Nada é perene. Sempre que acordamos, o mundo está diferente. Todos os dias, o mar faz deslocar uma rocha, os rios transportaram mais alguma areia, o vento adoça o topo de uma montanha e os continentes continuam a sua viagem. Normalmente estas mudanças são tão subtis que o tempo de uma vida não é suficiente para as detetar. Algumas delas só são conhecidas porque os cientistas nos dão conta dessas transformações.

Há 20 milhões de anos, grande parte da Península Ibérica tinha um clima subtropical húmido e era revestido por floresta Laurissilva, formada por laurácias, como o loureiro, vinhático ou til, que ainda hoje podemos observar nos arquipélagos da Madeira e dos Açores. Esta floresta desapareceu com a última glaciação, sendo substituída por uma floresta de coníferas, semelhante à taiga existente junto ao círculo polar ártico. Com o fim da glaciação, o clima voltou a aquecer e o coberto vegetal transformou-se uma vez mais, agora, para dar lugar às atuais florestas de carvalhos e matas mediterrânicas.

Com o coberto vegetal muda todo o ecossistema, mudando também com este os animais que o acompanham e, assim, toda a paisagem se transforma num contínuo perpétuo. A extinção de uns e o surgimento de outros seria natural se tudo se passasse ao ritmo habitual, normalmente medido em milhões de anos. Se assim fosse, o lince-ibérico habitaria a Malcata até à próxima idade do gelo. Mas o ser humano, impaciente, acelerou o processo, transformou a paisagem e o que antes acontecia em centenas de milhares de anos aconteceu em poucas décadas.

“Salvemos o lince e a Serra da Malcata” foi o slogan utilizado na primeira campanha de sensibilização sobre o lince-ibérico (atualmente, um dos felinos mais ameaçados do mundo), realizada nos anos 80 do século XX, aquando da criação da Reserva Natural da Serra da Malcata. A frase é sábia, porque sem serra não pode haver lince. E por serra entenda-se os carvalhais, carrascais, ribeiros, peixes, insetos, anfíbios, aves, mamíferos... enfim, todo um ecossistema a que chamámos de Malcata.

O lince, que outrora habitou esta serra, há já várias décadas que não é observado. Um dos últimos exemplares conhecidos está embalsamado e exposto no Museu Municipal de Penamacor. Esperemos que daqui a mais umas décadas não seja necessária nova visita a esse museu para conhecer o último carvalho da Malcata. “Salvemos o carvalho e a Serra da Malcata”!