Porto Santo, Ilha Dourada
A Ilha do Porto Santo, no arquipélago da Madeira, é um caso flagrante da importância da paisagem enquanto elemento identitário essencial de um território. O Porto Santo e seus ilhéus adjacentes são pura paisagem a pontuar o Oceano Atlântico, objetivamente e poeticamente.
Mar, praia e montanha constituem no Porto Santo uma trilogia natural perfeita. Ilha peculiar e fascinante, apresenta uma paisagem de surpreendentes e harmoniosos contrastes: quando exposta à luz diáfana do sol meridional, mostra-se volúvel e cativante, ao mesmo tempo real e feérica, com infinitas cambiantes de tons argênteos e dourados e uma paleta de cores indescritível, entre o negro basáltico dos calhaus, o ouro refulgente das areias da praia e o verde esmeraldino do mar translúcido.
O processo vulcânico de formação da Ilha do Porto Santo teve origem há dezoito milhões de anos. Este território insular tem, portanto, o dobro da idade da Ilha da Madeira – o que nos permite, designadamente, antecipar os processos de transformação geológica e paisagística a longo prazo.
A atual morfologia e aparência da Ilha do Porto Santo resultam assim de um extenso processo evolutivo que, com algum simplismo, se pode repartir em três etapas, após a extinção da atividade vulcânica, há pouco mais de 10 milhões de anos: um longo período inicial, quando os seis ilhéus adjacentes integravam a ilha mãe; uma segunda fase, em que o território já apresentava a configuração geográfica atual e estava revestido de dragoeiros, zimbros, barbuzanos de outras espécies da flora endémicas; uma derradeira etapa, que se iniciou com a chegada dos ‘descobridores’ portugueses João Gonçalves Zarco e Tristão Vaz Teixeira, em 1418.
O povoamento do Porto Santo no século XV e a consequente exploração agrícola e pecuária interferiu intensamente na paisagem insular, acentuando a aridez da ilha e a propensão erosiva do solo. De tal modo que, no século XIX, o Porto Santo se afigurava como território desolador e agreste, com escassez de recursos hídricos e um solo muito empobrecido, sem vegetação suficiente para sustentar o terriço arenoso que as torrentes pluviais arrastavam livremente para o mar.
Observada do mar, a silhueta dos picos na paisagem inóspita do Porto Santo representava o espinhaço de um território em agonia – a que correspondia uma comunidade humana a lutar com cíclicas crises de subsistência, obrigada a escolher entre a fome e a emigração – de tal modo que o príncipe Alberto I do Mónaco, que visitou a ilha durante suas expedições científicas oceanográficas, registou no diário de bordo, no dia 3 de Julho de 1897: «Que triste terra! As serras são de uma nudez absoluta».
Hoje, graças ao trabalho hercúleo e persistente de reflorestação iniciado há cem anos pelo regente florestal Schiappa de Azevedo, voltou o arvoredo (já não especificamente endémico) a cobrir uma parte significativa da Ilha do Porto Santo, revitalizando-a e contribuindo para uma valorização assinalável da diversidade da paisagem, com proveito económico para uma pequena ilha que vive principalmente do turismo.
O património paisagístico porto-santense é assim, resultado das dinâmicas naturais de há milhões de anos e da intervenção humana nos últimos seis séculos. Do mar à montanha (os picos mais elevados quedam-se pelos 500 metros de altitude), a orografia e a paisagem do Porto Santo é um palimpsesto de todas as estas transformações e intervenções. A vasta praia de areias biogénicas carbonatadas – constituída maioritariamente por minúsculos grãos de material fóssil fragmentado, e não por silicatos, como é comum nas praias de Portugal – é o resultado de um processo dinâmico milenar de transporte de areias, pela ação eólica e hidráulica, do norte da ilha para enseada sul, onde permanecem depositadas sobre uma extensa plataforma subaquática. A ilha mostra-se assim, pelas propriedades cromáticas desta areia, debruada a ouro na fímbria do mar azul esverdeado. É pois a areia desta praia que dá o epíteto de Ilha Dourada ao Porto Santo.
Observando o pequeno vale no centro do Porto Santo (atravessado quase na totalidade da sua extensão pela pista do aeroporto), repartido em talões com muros de croché a proteger as vides; estendendo depois a atenção às encostas onde outrora se lançava a semente da cevada, do trigo, do chícharo; elevando, por fim, o olhar perscrutante aos picos, por onde deslizam sombras de nuvens leves embaladas pelo vento, a paisagem do Porto Santo é indefinível na sua aparência em permanente mutação: negra na contraluz do arrebol matinal, de caliça na reflexão do meio-dia, coruscante ao sol claro e inclemente da tarde, e ocre de incêndio ao entardecer; verde no escasso inverno, morena como o restolho nas restantes estações do ano.
Deve-se toda esta policromia à circunstância geográfica do Porto Santo, mas também, especialmente, ao revestimento natural da sua superfície: o panasco que a canícula descoloriu nos terrenos da encosta, que dois dias de chuva despertaram para a ilusão de um verde duradouro; a rocha traquítica de cinzento indefinido, a mancha verde esmaltada dos pinheiros de Alepo, a diversidade de rocha e sedimentos à superfície, a ferrugem nas paredes das fendas de escoamento, o vívido laranja e o branco leitoso dos líquenes que revestem a superfície mais alta da ilha.
O reconhecimento, preservação e valorização do património natural e cultural porto-santense, que integra e tem por suporte natural a paisagem, motivou uma candidatura do Porto Santo a Reserva da Biosfera da UNESCO, apresentada pelo Estado Português no ano 2019.
Texto e fotografias de José Campinho
Informação complementar online:
https://portosantobiosfera.madeira.gov.pt/
https://ifcn.madeira.gov.pt/images/Doc_Artigos/Divulgacao/publicacoes/livros/LivroIPSanto.pdf
https://portosantoverde.wordpress.com/patrimonio-natural/geodiversidade/